A autoria da pintura do forro da Igreja de
São Domingos de Gusmão e suas restaurações
Luiz Alberto Ribeiro Freire
Doutor em História da Arte - EBA/UFBA
A notícia da descoberta de pintura de autoria de
José Joaquim da Rocha
no teto da Igreja da Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão em
Salvador amplamente divulgado em jornais, televisão e rádio nos
motiva a uma análise e considerações que pretendem esclarecer o
que se tem realizado em restauros nos interiores decorados das
antigas igrejas baianas desde o século XIX.
O documento mais antigo que dá notícia da
história da arte baiana encontra-se na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, é um manuscrito anônimo do
século XIX, com 16 folhas e intitula-se Noções
sobre a procedência da arte da pintura na província da Bahia.
Nele, as pinturas do teto da Igreja de São Domingos de Gusmão e dos
painéis da sacristia são dadas como de autoria do mestre pintor
José Joaquim da Rocha,
conforme podemos verificar no excerto:
“o mestre
José
Joaquim da Rocha.
Homem culto e de lettras, foi Rocha igualmente um artista de
merecimento, que á posteridade recommendou-se; tanto por ser na
Bahia. fundador e mestre capital de uma eschola de diversos
discipulos; quanto pelos seus importantes trabalhos, ainda em grande
parte existentes, como gloriosos padrões de sua memoria distincta:
- Na magnifica cúpula da igreja matriz de N.a
S.a
da Conceição da Praia. - Na do hospicio dos extinctos Agostinhos
de Na
/ S.a
da Palma, com primorósos paineis nas respectivas naves, e
sacristia. - Na da igreja matriz de S. Pedro Velho. Actualmente
retocada. -Na da capella de N.a
S.a
do Rosario da Baixa dos Sapateiros com paineis na nave. Na
da igreja da ordem 3a
de S. Domingos, com paineis na sacristia.
(grifo nosso) Depois retoca- / da a cúpula. - Estes, e mais outros
trabalhos, não mencionados daquelle illustre mestre...”
O autor do manuscrito provavelmente baseou-se na
memória oral para determinar essa autoria.
Carlos Ott (A escola bahiana de pintura 1764-1850, 1982, p. 59),
historiador alemão radicado na Bahia, reproduz a informação sobre
a autoria desse forro do manuscrito anônimo, afinal foi ele o
primeiro a transcrever o documento e reforçou a identificação
utilizando-se do método de Giovanni
Morelli, aquele que busca recorrencias
de traços e repetições de formas para atribuir autorias.
O método de Giovanni
Morelli é muito criticado pelos
historiadores, em razão de que o trabalho oficinal feito em grupo,
integrado por um mestre que coordenava oficiais e formava aprendizes
fundamentava-se na cópia e no aprendizado de um vocabulário
artístico, fazendo com que uma forma fosse repetida
independentemente de ser pintado pelo mestre, por um oficial de sua
oficina, ou mesmo um aprendiz.
(Fotografia de Anibal Gondim publicada no livro “A talha neoclássica na Bahia").
Só é possível definirmos autorias com segurança
se compararmos os documentos de contratação do artista, recibos
assinados por ele com a obra realizada, considerando ainda ter sido
essa obra alterada em intervenções posteriores. Para tanto o
restauro responsável e científico auxilia no trabalho do
historiador da arte. Infelizmente, não
consta nos arquivos da Ordem 3ª de São Domingos de Gusmão nenhum
documento a respeito. Por falta de conservação e pela fragilidade
do papel diante do clima e dos insetos, os documentos mais antigos,
do século XVIII, na sua grande maioria se perderam. O método agora
adotado para atribuir a autoria da pintura do teto dessa igreja é o
mesmo utilizado nos anos de 1950-70 por Carlos
Ott, contudo temos o referencial do
manuscrito anônimo, que em nenhuma hipótese deve ser desprezado,
muito menos omitido.
A reforma da talha em padrões neoclássicos
processou-se nessa igreja no período de 1872 a 1888. A antiga talha
do século XVIII foi completamente destruída e substituída
(FREIRE, A talha neoclássica na Bahia, 2006) por uma nova que se
preservou até hoje e que passa agora por restauro sob a
responsabilidade da empresa MEHLEM CONSTRUÇÕES LTDA, coordenada
pelo restaurador Julio Maia.
Não houve no bojo dessa reforma do século XIX
nenhuma proposta de “modernização” do forro da nave. Os irmãos
da Ordem decidiram manter o teto com pintura em perspectiva, ou por
respeito, ou pela sua beleza e complexidade, ou podem ter decidido
mantê-lo por faltar recursos para substituir a pintura antiga por
outra nos padrões neoclássicos, já que os poucos recursos
financeiros eram sempre evocados nas reuniões da mesa administrativa
dessa Ordem. Os dominicanos não foram os únicos a preservarem a
pintura em perspectiva no teto da nave, muito antes os irmãos do
Santíssimo Sacramento da Rua do Passo fizeram o mesmo.
O certo é que nas atas de reunião do período da
reforma não se cogitou em permutar a pintura, mas se contratou o
pintor e professor Francisco José
Rufino de Sales em 1879 para
“restauração do tecto, engessamento de toda obra de talha e
douramento do tecto da Capella-mór”. O referido pintor foi
afastado da obra em cerca de 1880 por desobedecer aos prazos,
atrasando a obra, e por utilisar folha de prata, quando deveria
usar folha de ouro e outro importante pintor atuante na Bahia do
século XIX, o retratista José Antonio
da Cunha Couto, foi contratado em 1882
para a conclusão da restauração do teto (FREIRE, A talha
neoclássica na Bahia, 2006, p. 129-130, 276).
Os irmãos de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos modernizaram a pintura do teto de sua
igreja, adaptando a pintura em perspectiva aos padrões do século
XIX encobrindo com tinta azul celeste salpicada de estrelas
entalhadas e douradas toda a orla do medalhão central onde havia
arquitetura fingida, deixando à vista somente o quadro central em
que figura a Virgem do Rosário (FREIRE, A talha neoclássica na
Bahia, 2006, p. 283). O mesmo não ocorreu em São Domingos de
Gusmão. Provavelmente os pintores (Rufino de Salles e Cunha Couto)
que restauraram o teto da igreja dos dominicanos no século XIX
encobriram alguns elementos da arquitetura fingida pintados por J.
J. da Rocha, que agora reaparece pela
ação do restauro. Não cremos que esses pintores do final do século
XIX tenham encoberto a perspectiva de Rocha por outra nova, o que
hoje reaparece é o trabalho da oficina de Rocha
que foi avivado e restaurado pelos dois pintores (FREIRE, A talha
neoclássica na Bahia, 2006, p. 285).
Em outras igrejas baiana que serão restauradas pelo IPHAN através
do PAC das cidades históricas um problema se imporá, que é o de se
decidir se a solução pictórica do século XIX deve ser mantida, ou
se uma outra mais antiga (do século XVIII), que pode ser em
perspectiva ilusionista deve ser buscada e revelada.
Fig. 3 - Teto
da igreja de N. Sra. do Rosário dos Pretos depois da
reforma neoclássica efetuada no
século XIX. (Fotografia de arquivo do
IPAC/Ba publicada no livro A
talha neoclássica na Bahia).
Fig. 4 -Medalhão central da
igreja de N. Sra. do Rosário
dos Pretos depois da reforma
neoclássica efetuada no
século XIX. (Fotografia do
arquivo do IPAC/Ba publicada
no livro A talha neoclássica na
Bahia)
Fig. 5 - Teto da Igreja de N.
Sra. do Rosáriodos Pretos depois
do restauro efetuado pelo IPAC
entre 1970 e 1980.
A decisão porém, jamais deve ser tomada somente pelo restaurador e
sua equipe, o problema deverá ser analisado e discutido por uma
comissão científica integrada por historiadores da arte,
historiadores e outros restauradores não envolvidos com a obra de
restauro com base nas fotografias realizadas sob a luz de lâmpadas
de ultra violeta e infra-vermelho, à luz do conhecimento científico
em cada área, do conteúdo da documentação escrita das irmandades
e ordens religiosas e deve ser observado as soluções dadas nas
reformas ornamentais operadas na Bahia no século XIX.
A falta desse processo na maioria das obras de restauro promovidas na
Bahia, tem levado à produção de “colchas de retalhos”, ou
seja, conformações que nunca existiram, em que uma parcela da obra
é decapada para uma camada subjacente, enquanto em outras parcelas
são mantidas a policromia superficial. A obra passa a não ser mais
dos mestres do passado distante ou do passado recente, mas da equipe
de restauradores que decidiu sozinha por essa conformação, negando
totalmente a historicidade da peça e decidindo sob um único
critério, o estético, ou seja: as pinturas mais belas são mantidas
ou buscadas nas camadas inferiores.
Não há “tecnologia de ponta” que substitua a discussão
especializada, mesmo porque fotografias sob raios de ultra-violeta,
infra-vermelho e raio “X” vem sendo usadas desde o século
passado e continuam imprescindíveis para distinguir camadas de
pinturas mais novas das mais antigas, assim como retoques de
intervenções posteriores.