quinta-feira, 23 de julho de 2015



 

A autoria da pintura do forro da Igreja de 

São Domingos de Gusmão e suas restaurações



Luiz Alberto Ribeiro Freire
Doutor em História da Arte - EBA/UFBA



A notícia da descoberta de pintura de autoria de José Joaquim da Rocha no teto da Igreja da Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão em Salvador amplamente divulgado em jornais, televisão e rádio nos motiva a uma análise e considerações que pretendem esclarecer o que se tem realizado em restauros nos interiores decorados das antigas igrejas baianas desde o século XIX.
O documento mais antigo que dá notícia da história da arte baiana encontra-se na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, é um manuscrito anônimo do século XIX, com 16 folhas e intitula-se Noções sobre a procedência da arte da pintura na província da Bahia. Nele, as pinturas do teto da Igreja de São Domingos de Gusmão e dos painéis da sacristia são dadas como de autoria do mestre pintor José Joaquim da Rocha, conforme podemos verificar no excerto:
o mestre José Joaquim da Rocha. Homem culto e de lettras, foi Rocha igualmente um artista de merecimento, que á posteridade recommendou-se; tanto por ser na Bahia. fundador e mestre capital de uma eschola de diversos discipulos; quanto pelos seus importantes trabalhos, ainda em grande parte existentes, como gloriosos padrões de sua memoria distincta: - Na magnifica cúpula da igreja matriz de N.a S.a da Conceição da Praia. - Na do hospicio dos extinctos Agostinhos de Na / S.a da Palma, com primorósos paineis nas respectivas naves, e sacristia. - Na da igreja matriz de S. Pedro Velho. Actualmente retocada. -Na da capella de N.a S.a do Rosario da Baixa dos Sapateiros com paineis na nave. Na da igreja da ordem 3a de S. Domingos, com paineis na sacristia. (grifo nosso) Depois retoca- / da a cúpula. - Estes, e mais outros trabalhos, não mencionados daquelle illustre mestre...”
O autor do manuscrito provavelmente baseou-se na memória oral para determinar essa autoria. Carlos Ott (A escola bahiana de pintura 1764-1850, 1982, p. 59), historiador alemão radicado na Bahia, reproduz a informação sobre a autoria desse forro do manuscrito anônimo, afinal foi ele o primeiro a transcrever o documento e reforçou a identificação utilizando-se do método de Giovanni Morelli, aquele que busca recorrencias de traços e repetições de formas para atribuir autorias.
O método de Giovanni Morelli é muito criticado pelos historiadores, em razão de que o trabalho oficinal feito em grupo, integrado por um mestre que coordenava oficiais e formava aprendizes fundamentava-se na cópia e no aprendizado de um vocabulário artístico, fazendo com que uma forma fosse repetida independentemente de ser pintado pelo mestre, por um oficial de sua oficina, ou mesmo um aprendiz.

Figura 1 - Pintura em perspectiva da Igreja de São Domingos de Gusmão restaurado por Francisco de Salles e Cunha Couto (Fotografia de Anibal Gondim publicada no livro A talha neoclássica na Bahia)





Fig. 2 - Quadro central do teto da Igreja de São Domingos de Gusmão restaurado por Francisco de Salles e Cunha Couto 
(Fotografia de Anibal Gondim publicada no livro “A talha neoclássica na Bahia").

 
Só é possível definirmos autorias com segurança se compararmos os documentos de contratação do artista, recibos assinados por ele com a obra realizada, considerando ainda ter sido essa obra alterada em intervenções posteriores. Para tanto o restauro responsável e científico auxilia no trabalho do historiador da arte. Infelizmente, não consta nos arquivos da Ordem 3ª de São Domingos de Gusmão nenhum documento a respeito. Por falta de conservação e pela fragilidade do papel diante do clima e dos insetos, os documentos mais antigos, do século XVIII, na sua grande maioria se perderam. O método agora adotado para atribuir a autoria da pintura do teto dessa igreja é o mesmo utilizado nos anos de 1950-70 por Carlos Ott, contudo temos o referencial do manuscrito anônimo, que em nenhuma hipótese deve ser desprezado, muito menos omitido.
A reforma da talha em padrões neoclássicos processou-se nessa igreja no período de 1872 a 1888. A antiga talha do século XVIII foi completamente destruída e substituída (FREIRE, A talha neoclássica na Bahia, 2006) por uma nova que se preservou até hoje e que passa agora por restauro sob a responsabilidade da empresa MEHLEM CONSTRUÇÕES LTDA, coordenada pelo restaurador Julio Maia.
Não houve no bojo dessa reforma do século XIX nenhuma proposta de “modernização” do forro da nave. Os irmãos da Ordem decidiram manter o teto com pintura em perspectiva, ou por respeito, ou pela sua beleza e complexidade, ou podem ter decidido mantê-lo por faltar recursos para substituir a pintura antiga por outra nos padrões neoclássicos, já que os poucos recursos financeiros eram sempre evocados nas reuniões da mesa administrativa dessa Ordem. Os dominicanos não foram os únicos a preservarem a pintura em perspectiva no teto da nave, muito antes os irmãos do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo fizeram o mesmo.
O certo é que nas atas de reunião do período da reforma não se cogitou em permutar a pintura, mas se contratou o pintor e professor Francisco José Rufino de Sales em 1879 para “restauração do tecto, engessamento de toda obra de talha e douramento do tecto da Capella-mór”. O referido pintor foi afastado da obra em cerca de 1880 por desobedecer aos prazos, atrasando a obra, e por utilisar folha de prata, quando deveria usar folha de ouro e outro importante pintor atuante na Bahia do século XIX, o retratista José Antonio da Cunha Couto, foi contratado em 1882 para a conclusão da restauração do teto (FREIRE, A talha neoclássica na Bahia, 2006, p. 129-130, 276).
Os irmãos de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos modernizaram a pintura do teto de sua igreja, adaptando a pintura em perspectiva aos padrões do século XIX encobrindo com tinta azul celeste salpicada de estrelas entalhadas e douradas toda a orla do medalhão central onde havia arquitetura fingida, deixando à vista somente o quadro central em que figura a Virgem do Rosário (FREIRE, A talha neoclássica na Bahia, 2006, p. 283). O mesmo não ocorreu em São Domingos de Gusmão. Provavelmente os pintores (Rufino de Salles e Cunha Couto) que restauraram o teto da igreja dos dominicanos no século XIX encobriram alguns elementos da arquitetura fingida pintados por J. J. da Rocha, que agora reaparece pela ação do restauro. Não cremos que esses pintores do final do século XIX tenham encoberto a perspectiva de Rocha por outra nova, o que hoje reaparece é o trabalho da oficina de Rocha que foi avivado e restaurado pelos dois pintores (FREIRE, A talha neoclássica na Bahia, 2006, p. 285).
Em outras igrejas baiana que serão restauradas pelo IPHAN através do PAC das cidades históricas um problema se imporá, que é o de se decidir se a solução pictórica do século XIX deve ser mantida, ou se uma outra mais antiga (do século XVIII), que pode ser em perspectiva ilusionista deve ser buscada e revelada.



Fig. 3 - Teto da igreja de N. Sra. do Rosário dos Pretos depois da
reforma neoclássica efetuada no século XIX. (Fotografia de arquivo do
IPAC/Ba publicada no livro A talha neoclássica na Bahia).





Fig. 4 -Medalhão central da igreja de N. Sra. do Rosário
dos Pretos depois da reforma neoclássica efetuada no
século XIX. (Fotografia do arquivo do IPAC/Ba publicada
no livro A talha neoclássica na Bahia)





Fig. 5 - Teto da Igreja de N. Sra. do Rosáriodos Pretos depois
do restauro efetuado pelo IPAC entre 1970 e 1980.

A decisão porém, jamais deve ser tomada somente pelo restaurador e sua equipe, o problema deverá ser analisado e discutido por uma comissão científica integrada por historiadores da arte, historiadores e outros restauradores não envolvidos com a obra de restauro com base nas fotografias realizadas sob a luz de lâmpadas de ultra violeta e infra-vermelho, à luz do conhecimento científico em cada área, do conteúdo da documentação escrita das irmandades e ordens religiosas e deve ser observado as soluções dadas nas reformas ornamentais operadas na Bahia no século XIX.
A falta desse processo na maioria das obras de restauro promovidas na Bahia, tem levado à produção de “colchas de retalhos”, ou seja, conformações que nunca existiram, em que uma parcela da obra é decapada para uma camada subjacente, enquanto em outras parcelas são mantidas a policromia superficial. A obra passa a não ser mais dos mestres do passado distante ou do passado recente, mas da equipe de restauradores que decidiu sozinha por essa conformação, negando totalmente a historicidade da peça e decidindo sob um único critério, o estético, ou seja: as pinturas mais belas são mantidas ou buscadas nas camadas inferiores.
Não há “tecnologia de ponta” que substitua a discussão especializada, mesmo porque fotografias sob raios de ultra-violeta, infra-vermelho e raio “X” vem sendo usadas desde o século passado e continuam imprescindíveis para distinguir camadas de pinturas mais novas das mais antigas, assim como retoques de intervenções posteriores.


Fig. 6 - Teto da nave da Igreja de Nossa Senhora do Pilar depois da reforma neoclássica operada no século XX (Fotografia de Anibal Gondim) Pintura de José Theófilo de Jesus, talha de Joaquim Francisco de Matos Roseira. É provável que por baixo dessa pintura haja outra que pode ser uma perspectiva ilusionista, mas a Igreja tem uma ornamentação (retábulos, púlpitos, sanefas, grades, etc.) típica das soluções neoclássicas. Caso se descubra por prospecção outra pintura mais antiga que solução deve ser tomada?

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A POLÍTICA CULTURAL E OS MUSEUS por Almandrade

A POLÍTICA CULTURAL E OS MUSEUS
p/ Almandrade

A carta dos profissionais de museus ao Secretário de Cultura da Bahia,
me fez lembrar a crítica do carioca Wilson Coutinho: “Depois que
happenings e performances deixaram de ser engraçados, a instalação
ocupou, até na maioria dos casos, a nova forma populista de exibição:
mexe-se nela, anda-se, escuta-se barulhinhos, morde-se alguma coisa,
sente-se o vento, somos obrigados a andar descalços, etc. o que tornou
os museus e centros culturais verdadeiros playgrounds para alegrar o
adulto idiotizado e a criança criativa”. Estamos falando de um museu
específico, o de arte. Se ele é o espelho de uma produção cultural, em
tal contexto, reflete o narcisismo do espetáculo, em detrimento do
ponto de vista da reflexão.

A partir das décadas de 1980 e 90, foram criados centros culturais e
museus, em quase todo o mundo, sem se saber ao certo o que colocar
neles. Surgiu também uma nova profissão na arte: “a sua excelência, o
curador... Os museus tornaram-se espetáculos que pouco importa o que
se mete dentro deles...” (Coutinho). Como se não bastasse tudo isso,
com algumas exceções, Tem-se a impressão de que o coquetel e presença
de celebridades registradas nas colunas sociais são mais importante
que a exposição.

Perdão aos profissionais de museus, por meter a colher onde não
deveria, por entrar numa discussão que não é mais da especialidade e
da responsabilidade do artista plástico, mas a minha intenção política
não tem outro significado, senão contribuir para o debate. O fato é
que, na década de 1970, quando iniciamos o nosso percurso na arte,
descendentes da arte conceitual, tínhamos o museu, como um lugar de
atuação e discussão, os mais politizados, até falavam de suas
propostas artísticas, como intervenções materialistas na instituição
ou no circuito de arte. Também não havia lei de reserva de mercado.
Hoje, o artista vive à margem da república museal, também pudera, ele
perdeu a consciência crítica e o discurso, passou a ser um produtor de
obras voláteis, o verdadeiro bobinho da corte para animar platéias com
pouco raciocínio.

A salvaguarda fica ainda comprometida, quando é o próprio artista que
despreza o acervo do museu, seu material de trabalho e reflexão, ele
esqueceu a lição de Cézanne que passava tardes no Louvre, contemplando
a tradição para dar um passo adiante na modernidade. Sem ter o mínimo
trabalho de olhar, declaram-se artistas talentosos nos sites de
relacionamentos, para o K K K da platéia de amigos. O pior é que esse
culto à ignorância é uma praga que está contaminando parte da chamada
arte contemporânea, agentes do circuito, e até defensores de uma
política cultural. Nessa confusão, o melhor gestor é aquele que faz
mais festas, mais vernissages, que trás para a província novidades que
já ocorreram em outros tempos, para atender outros interesses.

Os artistas visuais não chegaram a viabilizar um processo de discussão
acerca de uma política para as artes, alguns arriscaram acusações, mas
sem apresentar as provas. Difícil condenar o inimigo. É preciso pensar
a realidade museológica e as artes visuais na Bahia. Se os artistas
não articularam nenhum discurso, nem fizeram propostas, se limitaram a
reivindicações, os museólogos foram mais espertos, aparelhados com a
Política Nacional de Museus, acenderam a fogueira. Resta saber se a
lenha vai realmente pegar fogo. Não adianta só o vento soprar, a lenha
precisa estar seca.

Os museus passaram por reformas significativas nos últimos anos,
ganharam prestígios e são considerados instituições culturais
referência da cidade contemporânea. Surgiu até a indústria de museus,
que atua mais a serviço do entretenimento e do turismo do que da
memória, da história e do exercício da cidadania, mas capaz de
movimentar a economia. Essa difícil conciliação cultura e economia que
ocupa cada vez mais centro das atenções.

Em salvador, os museus são instalações arquitetônicas adaptadas,
muitas que não atendem mais as condições exigidas de guarda e
conservação do acervo, outras em condições estupidamente precárias,
contrárias a tudo que recomenda as necessidades e política de museus.
Temos a política, mas não temos onde aplicá-la. Será que adianta
ensinar a criança a lavar as mãos antes das refeições, se em casa a
água é escassa? Vamos acreditar que sim, um dia ela vai ser crescer,
perceber a riqueza da água e lutar para reverter essa situação.

Na segunda metade da década de 1980, quando ocupamos o Departamento de
Museus da Fundação Cultural do Estado, tendo à frente o artista
plástico Zivé Giudice, defendemos a transferência do Museu da Arte
Moderna do Solar do Unhão para uma edificação que atendesse às
exigências da museologia, em área da cidade de fácil acesso e com um
partido arquitetônico de visibilidade moderna. Fomos vencidos.
Readaptado para as condições de museu, a arquitetura do Solar do Unhão
foi comprometida, a escada projetada pela arquiteta Lina Bardi que
dialogava com o exterior através das esquadrias, ficou estrangulada.
Com poucos recursos, sem vontade política e principalmente sem vontade
intelectual, os museus sobrevivem na capital da festa.

Almandrade
(artista plástico, poeta e arquiteto)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A CULTURA, A ARTE E A POLÍTICA CULTURAL

Nas chamadas políticas culturais emergenciais, na maioria das vezes,
são discursos onde a cultura não passa de uma fantasia, uma miragem no
fim do túnel. Como ela não é assunto prioritário, foi transferida para
a iniciativa privada. Os investimentos visam retornos, fala-se em
números, percentuais, nas leis de renúncia fiscal, sem uma idéia clara
de cultura e seu papel na sociedade. Todo mundo se acha no direito de
opinar, o patrocinador, o empresário, o político, o produtor cultural,
o professor universitário, o curador etc. menos o artista e os que
trabalham diretamente com as práticas artísticas, os operários da
linguagem.

Depois da descoberta tardia que a cultura não se restringe às
linguagens artísticas, as práticas acionadoras do pensamento crítico
passaram a ser vistas com desconfiança, "coisas de elite", foram
marginalizada e o entretenimento passou a ser o centro do
financiamento público. A festa passou a ser o alvo dos investimentos
públicos e privados em detrimento da cultura pensamento.

O que deveria ser uma política pública de cultura? Uma pergunta
oportuna em momentos de transição política, quando as reivindicações
reaparecem e as disputas por cargos públicos emergem. Antes de ser um
problema de economia, de leis de incentivo, de política partidária, a
cultura é um dispositivo da cidadania, um direito básico que deve
fazer parte da formação do sujeito. "A cultura é coisa do homem que
mora num certo lugar e num certo tempo" (Gerardo Mello Mourão).

Portanto, antes de falar dos reduzidos recursos econômicos destinados
à área cultural, é estratégico se pensar em intervir culturalmente no
modelo de desenvolvimento que afeta o meio ambiente, as condições
materiais, sociais e culturais de uma comunidade.

Uma política de cultura deve primeiramente levar em conta o quanto ela
contribui para o imaginário das pessoas, tornando-as capazes de
assumir decisões nas suas vidas. Que ela é uma forma de relacionamento
com o mundo e seu cotidiano, antes de ser uma mercadoria e um objeto
da política. Relegada à condição de entretenimento, passou a fazer
parte das diversões, regida pela economia da cultura. E tudo que faz a
economia crescer, que gera emprego e renda é ético nesta sociedade
onde o emprego é cada vez mais difícil. Mas a ética e lógica da
cultura é outra. Se a diversão faz a economia crescer, atende a
demanda de habitantes, e turistas carentes de lazer, poucas vezes
contribui para o aumento e transformação do repertório.

O homem vive entre a natureza e a cultura. E a cultura é uma
construção do homem. Um trabalho. Resultado de um longo caminho. Cada
cidade, estado ou região tem uma cultura que lhe é própria e múltipla.
Uma política de cultura deve garantir a liberdade das diversas
manifestações, sem qualquer interferência, e transferir as decisões
para quem faz cultura, quem conhece as particularidades das
linguagens, quem diretamente lida com o patrimônio material e
imaterial que faz o acervo de uma cultura.

E quando se fala de artes, produtos diversificados e delicados e ao
mesmo tempo conhecimentos específicos que fazem parte de uma cultura,
o político, o produtor ou o atravessador deve ser substituído pelo
técnico ou o especialista do metié. E uma instituição que trabalha com
as artes tem como princípio estimular a liberdade de expressão e não
servir com extensão de outras políticas ou de outras instituições.

Almandrade
(artista plástico, poeta, arquiteto )